Crise da Justiça e Crise do Regime
Tópicos de uma intervenção na livraria "Ler Devagar", em 3 de Setembro de 2004
1
A mentalidade decretina
Grande parte das proclamações piedosas que se vão fazendo em torno do tópico Estado de Direito padecem de uma mal-formação congénita: confundem Estado de Direito com Estado de Legalidade.
Esquecem que acima da lei está o Direito e que acima do Direito está a Justiça.
E não é possível a superação do Legalismo pondo os pés no sítio onde deve estar a cabeça, pela invocação das considerações sociológicas na aplicação da lei.
Não podemos apenas passar do positivismo legalista para o positivismo sociologista.
2
Rule of Law não é império da lei
O Estado de Direito não surgiu em Portugal com a Constituição de 1976, mas antes com a revisão constitucional de 1982.
E raros conseguem proclamar sem peias que esta verdade não consegue ser detectada pelos que, em cima de uma formação positivista-legalista, marcada pela jurisprudência dos conceitos, apenas recebeu o piedoso e demagógico sociologismo do Centro de Estudos Judiciários, marcado pelo estilo de Laborinho Lúcio.
Nem o rule of law é império da lei, nem a justiça é fazer invocações de celestial sociologismo.
3
Contra o neo-corporativismo do pretenso Estado de Juízes
O Estado de Direito não é necessariamente um Estado de Juízes, ou, melhor dizendo, o Estado do comunismo burocrático desta sociedade anónima de responsabilidade bem limitada, a que se acolhe o neo-corporativismo dos nossos magistrados.
4
O Estado não é monopólio dos juristas
A justiça é assunto sério demais para se condundir com o restrito conceito de administração da justiça, constitucionalmente feita em nome do povo, através da hierarquia ministerial e do sagrado das escolas de formação dos magistrados.
Mesmo a administração da justiça e a organização judiciária são assuntos que não podem ficar pelo circuito fechado do partido dos magistrados, do partido dos advogados ou do partido dos assistentes e professores de direito.
5
A justiça não é coutada dos magistrados
O Estado de Direito não é monopólio dos juristas e muito menos coutada dos magistrados. Por outras palavras, a autonomia do jurisdiconal implica que se repense o processo de formação de magistrados e até o prévio processo de formação dos juristas.
Porque não podemos continuar a ter uma administração da justiça que quase vive em regime terceiro-mundista, importa apresentar algumas saídas para o impasse, começando por denunciar o mais do mesmo dos habituais paninhos quentes:
6
O falso remédio corporativo
Rejeitamos os remédios apenas corporativos. Desde as boas conclusões do Congresso dos Advogados Portugueses à eventual negociação inter-sindical dos vários operadores da justiça, com a participação dos chamados clientes.
7
Contra a solução tecno-catedrática
Também não aceitamos a solução tecnocrática, pelo recurso ao clássico modelo dos grandes professores, notáveis pelas respectivas capacidades de elaboração de uma excelente antologia de direito comparado.
8
Politizar o problema
O problema é claramente político e implica o recurso à clássica perspectiva de instituição. Implica, em primeiro lugar uma ideia de obra:
O Estado de Direito não é o Estado de Legalidade. E este princípio deve fecundar a formação dos juristas, dos magistrados e dos advogados.
9
Novas e globais regras processuais
A democracia precisa de um ministro como a Ditadura Nacional teve com Manuel Rodrigues e de um processualista, com a mesma Ditadura teve em José Alberto dos Reis. A democracia precisa de ser mais competente do que a Ditadura e não cair na tentação do recurso às multinacionais do direito.
10
Manifestações de comunhão
Há necessidade de uma unidade espiritual capaz de fazer unidade nos diversos discursos sobre a justiça. E os vários corpos especiais de administração judiciária não podem continuar a ser vozes dispersas que pronunciam as contraditórias palavras desta elefantíase de leis.
11
Refazer o Estado
O quase estado de sítio judiciário implica o lançamento de um imediato programa de defsa do Estado de Direito, tendo em vista a necessária defesa do regime.
Se os chamados operadores judiciários alinharem neste processo de fragmentação global do Estado-Aparelho de Poder transformar-nos-emos numa espécie de satélite artificial de um grande buraco negro que gerará a revolta do Estado Comunidade, isto é do Povo.
O Estado sempre foi Segurança, Imposto e Justiça.
Primeiro, o aqui d'el rei que estabeleceu o monopólio da violência legítima e tudo parece desmoronar, tanto pelo terrorismo global como pela utilização de corvetas contra traineiras estrangeiras.
Segundo, o imposto enreda-se na impotência do combate à evasão fiscal, às isenções de classe e aos atentados contra o princípio da igualdade.
Terceiro, os juízes e magistrados, enredados por mediáticos processos (Moderna, Casa Pia, Apito Dourado) correm o risco de que muitos leiam as processuais dilações como procuradas águas de bacalhau dos colarinhos brancos.
13
Lutar contra o absolutismo
Importa, antes de mais, uma radical leitura do Estado de Direito, como o exacto contrário do Estado Absolutista.
Contra a terrível tradição do despotismo ministerial, para quem o que o ministro diz tem valor de lei, porque o ministro não está sujeito à própria lei que edita.
E o absolutismo tanto afectou o monarquismo do despotismo esclarecido como o democratismo revolucionário do Terrorismo da Razão, atingindo o século XX com o totalitarismo restauracionista ou vanguardista.
Será que a presente partidocracia continua este atavismo?