Valbom dos gaviões

Alguns escritos conspiradores, sofridos neste exílio interno, lá para os lados de São Julião da Ericeira, de costas para a Corte e com os sonhos postos no Atlântico...

sexta-feira, outubro 15, 2004

A política pós-socrática




Chegou Sócrates e o tempo mudou, mas a esperança ainda não voltou. Ferro foi-se, Carvalhas anunciou o abandono, Barroso mudou-se e, pasme-se, Portas assumiu o decanato da liderança partidária e até da governação. Eis a nova era, a vida nova, a direita mexida, a esquerda moderna, tudo pós-moderno, com teleponto, elixir da juventude eterna, quotas, cotas, tias, lambada e "barbies".

Eis o "pedregulho" que caiu em cheio neste charco... (Emídio Guerreiro dixit). Porque cita modernizadamente Kennedy, o John de quase há meio século, o tal que se foi em Dallas, depois ter ido com a Mafia e as Monroes, e de nos ter mandado p´rós Vietnames e a dos Porcos. Só que, entre Sócrates e Lopes, dois géneros zoológicos para o mesmo Louçã, há o idêntico perfume "hollywoodesco", entre o cineclubismo de esquerda e o gosto pela cóboiada da brilhantina, como o exige a salsicharia teledemocrática.

Logo, acabamos por ter que chafurdar nestas águas chocas das direitas que convêm à esquerda situacionista e das esquerdas que são subsidiadas pela direita dos interesses, onde continua a punição por delito de crença. Como aconteceu ao indigitado Rocco Buttiglione para comissário europeu, esse destacado professor e filósofo político, um dos mais marcantes nomes do jusnaturalismo neo-tomista, centrista de sempre, bem próximo do pensamento de João Paulo II, o que revela um dos mais graves vícios da nova Europa, o da censura implícita do novo politicamente correcto que prefere frades vindos do MES e do governo de Vasco Gonçalves.

Confesso que, apesar de não ser um praticante do catolaicismo e não nutrir qualquer simpatia pelo modelo berlusconiano, tenho de reconhecer que, com este neo-dogmatismo dito anti-dogmático, um tal Karol Wojtyla nunca poderia ter sido eleito e transformar-se na personalidade mais marcante da segunda metade do século XX.

Quem quiser ser alguém neste mercado intelectualês e politiqueiro não convém que se mostre um fervoroso católico, republicano, comunista, monárquico ou maçon, pois logo passa a ser integrista, histórico e fundamentalista, só porque tem espinha. Do mesmo modo, se manifestar as suas convicções heterossexuais, corre o risco de ser perseguido pelos trejeitos inquisitoriais dos inúmeros "lobbies" de "gays" que estão no poder mediático, político, diplomático e editorial, para gáudio das alqueidas e alqueidões.

Aqueles que têm crenças já não as podem exercitar na esfera pública. Ficam-se pela solidão dos lares, pelas pequenas catacumbas das redes de amigos e até pelos blogues que não são abruptos. Porque de quase de nada valem os signos institucionais de outras procuras, dado que a república caiu na ambiguidade discursiva de Sampaio, nesse texto sem palavra que apenas serve para interpretações da racionalidade importada, nesse discurso onde há apenas entrelinhas tortas e insinuações curvas, onde nem Deus escreveria direito nem o Diabo marraria. E, quanto menos a ideia e a emoção de nação nos mobilizarem, mais seremos estadualizados de forma alienígena. E com a política reduzida à heteronomia, a cidadania pode reduzir-se à fragmentação contestatária e ao protesto faccioso, como recentemente aconteceu em Coimbra, com o regresso da Falange Demagógica de 1910 à Sala dos Capelos.

Sem uma comunidade afectiva que nos dê justiça e bem comum, apenas reclamaremos direitos e nunca daremos ao todo a necessária justiça e o indispensável amor. Contestar, protestar, exigir podem ser fracturantes se não assumirem a dimensão militante da resistência. E caso não haja alma que nos identifique, não passaremos de mera sociedade anónima gestionária. Só com uma necessária tensão espiritual, poderemos vencer as teias da demagogia, da incompetência e do negocismo.

Discutir a educação não-universitária é sofrermos o "ranking" e o drama da colocação dos professores. É sabermos que os primeiros são os que podem pagar 330 euros por mês e que graças ao poder de compra serão abençoados pelo privilégio catolaico da igualdade cristã. Quem não paga e vai à missa é do interior, sítio dos parolos, provincianos, feios, porcos e sujos, desses que tem de pagar impostos para este socialismo da treta, feito em nome da liberdade, igualdade e fraternidade, com muita ética republicana à mistura."Ranking" é esta nossa querida pouca-vergonha que transformou a educação num campeonato de futebolícia, com árbitros corruptos pelo sistema, freirinhas postas ao serviço de novos-ricaços que, em vez de educação, fazem investimento educacional nos rebentos dos IRSs de sucesso, assim continuando a copiar o capitalismo de faca na Liga e na quinta das celebridades. E eu a recordar como era bela a igualdade evangélica, ou maçónica, da velha escola pública, onde efectivamente eram iguais em oportunidades o filho do contínuo e o filho do milionário...

O que mais me incomoda nas recentes movimentações das marceladas e pedralhadas é que tenho de chegar à conclusão que o velho Estado moderno se deixou enredar nas teias dos especialistas na conquista e manutenção no poder no âmbito do clubismo, do facciosismo e do campanário. Competentíssimos nesses domínios da fulanização, da galopinagem e do caciqueirismo, grande parte dos figurões que nos regem não percebem que atingiram, há muito, as raias do princípio de Peter, a partir das quais estão condenados a pisar os terrenos da incompetência.

sexta-feira, outubro 01, 2004

Esta ditadura da incompetência...




Depois de tantos educacionólogos, reformólogos e avaliólogos, a pátria está definitivamente murcha em sua criatividade explosiva, face a esta claustrofobia de quintal feito com cimento armado e ar condicionado. Assim, afogados nesta modorra decadentista para que fomos conduzidos pela ambição de dois ou três demagogos feitos ministros, ou de quatro ou cinco agenciadores de cunhas e subsídios feitos deputados, começamos a perceber que os nossos donos do poder são bonzos demais para domarem a inevitável fúria dos mansos que se avizinha. Até começa a ser difícil continuar a tapar o sol da verdade com a peneira comunicacional, porque tanto há mais delegados de propaganda médica do que médicos, como são mais assessores delegados da propaganda ministerial do que as direcções-gerais.

Se a nossas ditas elites continuarem a ser medidas pelo ritmo do cartão de crédito e do livro de cheques, apenas repetiremos o capitulacionismo que marcou a classe política monárquica diante do Ultimatum. E a nossa sociedade dita hiper-informada só topará os desastres que se avizinham depois do factos serem consumados. Porque quem pensa baixinho não vê um boi à frente dos olhos...

Se continuar esta ditadura da incompetência, até poderá acontecer que a nossa criatividade constitucional resolva o problema do presidente Sampaio, dado que tudo aponta para a emergência de uma auto-dissolução do sistema, sem necessidade dos discursos de Sócrates, Louçã e Carvalhas. Basta assinalarmos como se vai assistindo impassivelmente à destruição das nossas escolas superiores públicas de filosofia, história e literatura, só porque alguns as reduziram a meras fábricas de professores.

Não tardará em que sejamos mais uma das repartições de reparadores de "hardware" importado, onde apenas haverá repetidores e pirateadores de "software" alheio, perdendo a capacidade de criação de um pensamento enraizado nas circunstâncias, com instituições ditas universidades que não passarão de federações de centros de mera formação profissional, onde dominarão notáveis papagaios que vão monitorizando manuais de programação de outras ecologias.

De facto, até há pouco, a politologia contemporânea dizia que o "spoil system", o sistema dos troféus, correspondia ao sistema norte-americano de nomeação de novas equipas, depois da eleição de um presidente. Dizia-se também que o modelo fora instituído por Andrew Jackson no primeiro quartel do século XIX.

E Max Weber definia-o como a atribuição de todos os postos da administração federal ao séquito do candidato presidencial vitorioso e que, a partir de então, surgiu um novo modelo de partido, entendido como simples organização de caçadores de cargos, sem convicção alguma.
Com António Guterres, o spoil system passou a ser traduzido em português por "jobs for the boys", antes de Durão Barroso o volver em "boys for the jobs". Terá sido com base nesta experiência que Bailey considerou a política como um jogo onde os competidores actuam numa arena visando a conquista de troféus.

O que levou ao aparecimento, no modelo norte-americano, do "boss", do empresário político capitalista que procura votos em benefício próprio, sem ter uma doutrina e sem professar qualquer espécie de princípios. Um político profissional típico que trata de atacar os outsiders que lhe podem ameaçar os futuros rendimentos, isto é o futuro poder.

Em nome de Deus nos deram a Santa Inquisição. Em nome da Santa Razão nos deram a Junta da Providência Literarária e a Dedução Cronológico-Analítica. Vieram depois a Junta Expurgatória dos Estudos, a Junta Nacional de Educação, os grupos de trabalho, os PRECs e os recentes distribuidores de subsídios estatais, nomeados por favoritismo partidário. Todos esses paralelogramas de forças de que as presentes ministras apenas são a manifestação.

O mal, afinal, está no princípio, quando, no princípio, não há princípios. O problema não são os justinos, os abílios, as comptas ou o espírito de Bolonha. Com esta mentalidade gestionária dos merceeiros orçamentais, refazer o patriotismo científico, sem cedermos aos exercícios da manipulação emotiva, implica sementeira de razão, de vontade e de imaginação. Implica darmos nação ao Estado, darmos povo à nação e darmos homens ao povo. Foi por isso que pouco depois de termos o povo em Cortes, em 1254, fundámos a universidade, em 1290.

Julgo que, ainda hoje, as universidades europeias, mais ou menos companheiras da nossa, de Paris a Oxford, de Cambridge a Heidelberg, não estão dependentes das traduções em calão que por aí pululam muito decretinamente, em nome do absurdo centralismo concentracionário do ministerialismo e dos seus serôdios conselheiros, esses que há três ou quatro décadas continuam a pensar que são as únicas pessoas que pensam, arrogando-se no monopólio do reformismo. O marquês para Pombal, já!

(a ser publicado na revista Tempo, em 6 de Outubro de 2004)